O Travesseiro

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Seis horas e trinta minutos da manhã.
Eu acordei; ele não.
Enquanto vigiava seu sono, observei que sua respiração era quase inexistente; será que ainda estava ali? Ainda vivia?
Quanto a mim, era certo que sim.
Nunca me senti tão bem, tão solar.
Nunca.
Minha cama tem dois travesseiros.
Todos os dias, às seis e meia, olho para o travesseiro vazio do lado direito da cama.
Chove dentro de mim.
Penso no que falta.
Não naquele dia.
Era o dia mais completo de todos.
Pensei em acordá-lo e dizer que era importante, que nada mais faltava.
Talvez fosse importante demais.
Por que nunca olho para o meu travesseiro?
Talvez falte algo ali.
Virei para o outro lado, fechei os olhos, e morri um pouquinho.
(Ilustração: Puuung)

Servimos bem

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O exercício aqui era descrever o quadro acima (“O bar no Folies Bergères”, de Manet – não Monet hehe) em forma de narrativa.

Foi isso o que eu vi. O que você veria? Será que você veria algo?

Posso apostar que você já passou por centenas de “moças” como essa. E não viu.

“Servimos bem”

A moça no balcão é solícita, e se porta com elegância, como deve ser; não como quer ser. Hoje a casa está cheia. Em seu olhar, o cansaço é visível, e o sorriso sai sempre forçado. 

Todo dia, a mesma coisa: pessoas nem sempre simpáticas tomam seus drinques e assistem a espetáculos, enquanto ela permanece ali, imóvel.

Eles parecem divertir-se, ou ao menos confraternizar-se. Menos ela. A essa moça, que ninguém sabe o nome, esse direito é negado.

Será que reparam nela, ou simplesmente chegam, fazem seus pedidos automaticamente e se vão?

Isso ela nunca saberá. Aliás, que diferença faz? Ela é só a moça do bar.

Enquanto mantém o balcão essencialmente brilhante e limpo, as frutas e garrafas em posições estratégicas, e as melhores flores à disposição – assim como a si própria -, só lhe resta esperar e perder-se em devaneios sobre a própria existência.

Com a chegada formal da figura masculina, a espera finda, os devaneios cessam.

Ao trabalho!

Caos e calma

tumblr_n7l932rFxY1ttyb9yo1_1280Acredito que a maioria das pessoas prefira escrever ou ler em um lugar quieto, vazio, tranquilo, sem perturbações externas. O silêncio me assusta. Eu gosto de nadar contra a corrente, afinal, quase sempre o barulho está dentro da minha própria mente. O inferno sou eu mesma.

Posso escolher a montanha mais silenciosa do Tibete, que dentro do meu cérebro ainda vai ser um festival da Índia. Costumo escolher sempre o mesmo café, aquele famoso e multinacional, onde as pessoas gostam de ir e ter o exclusivo prazer, cada vez mais popular hoje em dia, de pedir coisas como ‘café descafeinado’ e ‘flor de sal’ e logo em seguida, tirar uma foto do bendito copo (mas isso é outra história).

Aliás, talvez essa seja exatamente a razão pela qual eu sempre esteja lá. Adianto que o café não é dessas coisas, não é que seja ruim, mas não é nada que eu não encontre na próxima esquina, com seu preço que “ladra” e seu sabor que, francamente, não “morde” muito. Sempre há aquele atendente que adora discutir sobre o tempo comigo, e alguns funcionários já até sabem meu nome.

Mas esses são detalhes menores. Por falar em minúcias, sempre peço a mesma coisa: espresso.

A verdadeira mágica começa quando, após garantir um banco de madeira e uma tomada para chamar de minha, termino meu ritual sagrado de esvaziar o envelope de sucralose sobre o líquido preto e quente, e mexer com o pauzinho à exaustão. Pode ser a milésima vez que faço isso, mas sempre sinto falta de colheres, para dar aquela lambidinha de leve, depois que termino. Detalhes demais?

Ligo a máquina, que geralmente está empoeirada, e a tela em branco parece bastante convidativa. Antes de digitar a primeira letra, que nem eu sei qual vai ser, olho ao redor. Rostos conhecidos e estranhos se misturam ao cheiro dos chai lattes e frapuccinos, conversas sobre investimentos e casamentos, memes e provas finais, em inglês, português, ou qualquer outra língua.

É o suficiente. Pessoas são laboratórios, e eu gosto de observá-las. Ouvir o que elas dizem nem sempre é uma boa ideia. É mais uma questão de teor do que de volume.

Plugo os fones em meus ouvidos, e escolho a playlist que mais se adapta ao meu humor, ou à emoção que quero passar para o papel. Aos poucos, as palavras saem dos meus dedos rumo ao teclado, espaço a espaço, ponto a ponto. O café esfria, ou acaba, e então o ritual é reiniciado. Não posso dizer quantos eu tomo, é imoral. Gastrite tem tentado me censurar, sem sucesso.

Coisas como “Tem alguém do seu lado?” – Não, não tem, ou “Qual a senha do banheiro, moça?” – 2909, me tiram do transe por um tempo. Depois eu retomo, releio todo o conteúdo escrito e geralmente apago ou reescrevo algo.

E todo o processo dura horas. Quantas? Não sei.

Quatro, cinco, nove.

Sempre é prazeroso.

Mas não é o bastante.

Não, nunca será.

Mas sempre há um amanhã, um recomeço.

Viver é fazer história todo dia.

Cativeiro

Mais um texto em sala de aula.

Esse ficou bem curtinho, por motivos de falta de tempo e certo bloqueio.

Sem mais, leiam/desfrutem/detestem/comentem:

Cativeiro

A mulher acordou cedo hoje. Está atarefada. Eu não vou com a cara dela. Sabe quando o santo não bate? Além disso, às vezes ela encosta bem perto e fala sem parar. Eu faço sinal de que estou odiando, mas ela ignora. Lá vem ela.

— Você viu que dia lindo lá fora? Estou tão feliz! Acordei muito animada hoje. E pelo visto, você também. Está até cantando!

Isso é o que ela pensa. Velha maldita.

O fato de que estou cantando não quer dizer que eu esteja feliz. Quem está triste também canta, mas eu já desisti de tentar explicar isso para ela ou para qualquer pessoa que more nessa casa.

É tudo uma questão de ponto de vista; se você acompanhasse minha vida de perto, diria que é uma bela mordomia. Sou alimentado, limpam a minha sujeira, tenho um lugar só para mim, e há pouco ou quase nada para me preocupar, porque não acontece muita coisa por aqui.

Esse é o problema. Todo dia é a mesma coisa. Acorda a mulher, ela me cumprimenta, eu respondo. O mesmo ocorre com o marido e o filho. A neta não cumprimenta, acho que não gosta de mim. Ou tem medo. Eu sei que há todo um mundo lá fora, mas tenho pouco conhecimento sobre ele, já que o meu alcance é bem limitado. Além do mais, vivo aqui desde que me lembro.

Como qualquer um, tem dias que acordo entediado e não cumprimento ninguém. Aí todo mundo reclama. Eles gritam comigo, insistem, mas eu não me rendo. Eles falam palavrão, e querem que eu também fale. Mas eu sou educado.

Eu só queria um pouquinho de paz, mas parece impossível. Esses dias, ouvi o marido dizer que paz é palavra que está ficando obsoleta, e sou obrigado a concordar. Afinal, não sou o único confinado; todo mundo parece viver em uma prisão particular, seja ela grande ou pequena, física ou psicológica, arcaica ou digital.

Esses dias, tomei coragem e tentei escapar, pela milésima vez. A velha deixou a porta aberta. Ela está cada dia mais distraída, deve ser a idade. Quando estava prestes a ganhar o mundo, o vento na cara, a liberdade tão almejada, ouvi os gritos da velha:

— Zé, o Paco está fugindo!

As mãos gordas do homem foram mais rápidas que eu. Fuga frustrada.

— Papagaio maluco. Não sabe onde é o seu lugar?

Como se ele soubesse o dele.

— Ei, não me olha assim, Paco. Faço isso para o seu bem. O mundo lá fora não tem piedade, vão acabar matando você.

Mais uma vez, tentei explicar que ali não é confortável, que eu adoraria saber o que há além das grades. E mais uma vez, escutei o homem dizer:

— Pronto, Dalva. Acho que ele acalmou. Está até cantando de novo, olha como canta bonito!

Definitivamente, o forte dos humanos não é a comunicação.

É mesmo?

Opa!

Como de costume, mais um conto “fruto” do exercício em sala.

Esse até que ficou engraçado.

Deleitem-se! Ou sofram!

PS: Você tem medo do “mesmo?”

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É mesmo?

Elena chegou em cima da hora ao local. Estava desempregada fazia quase um ano, por isso aquela entrevista significava muito. E já começou com o pé esquerdo. Culpa do trânsito caótico de São Paulo.

Aliás, ultimamente qualquer entrevista era valiosíssima. Mesmo pós-graduada, a jovem vinha mandando currículos até para faxineira, tamanho o desespero. Desta vez, a vaga era para secretária. O salário era bom, os benefícios também.

Ao deparar-se com uma longa fileira de elevadores, porém, um dilema antigo tomou conta de seu ser; toda vez era a mesma coisa. As mãos suavam, as pernas tremiam, a cada vez que Elena observava a seguinte placa:

“Antes de entrar no elevador, verifique se o mesmo encontra-se parado neste andar”

O olhar começou a procurar pelas escadas de incêndio, mas o nervosismo era tanto que não conseguia se concentrar.

— Você já apertou o botão para subir? – perguntou um rapaz baixinho, que acabava de encostar ao seu lado.

— Eu… eu acho que vou de escada. Você sabe onde ficam as escadas de incêndio?

— Mas qual a necessidade de escada, moça? Olha só, os seis elevadores estão desocupados. Não é todo dia que a gente tem essa sorte.

Ela aproximou-se mais um pouco dele, como se fosse contar um segredo.

— É que eu tenho um probleminha… eu tenho medo do Mesmo.

— É mesmo?

— Mesmo. Quando eu era criança, meu irmão dizia que o Mesmo era um monstro que assustava crianças nos elevadores, e quando eu finalmente decidi enfrentar o tal monstro, adivinha só. O Mesmo não estava parado no andar, e eu quase caí no fosso.

— Caramba!

— Desde então, eu não subo nem desço de elevador… Ah, achei as escadas.

— Em qual andar você vai? Podemos ir juntos.

— Décimo terceiro.

Ele conferiu um papel que segurava, e engoliu em seco.

— É… Parece que vou para o décimo terceiro também. Bom, você é quem sabe.

— Prefiro ir de escada, pode ir.

Ao imaginar a quantidade de degraus, Elena sentiu um desânimo tremendo, mas não tinha escolha. Ou isso, ou o Mesmo. Lentamente, começou o calvário, degrau após degrau.

Após quase uma hora, enfim ela chegou. Décimo terceiro andar, sala mil trezentos e sete. A porta estava aberta, e a senhora de óculos redondos a olhou dos pés à cabeça, com certo desdém.

— Boa tarde, meu nome é Elena. Vim para a vaga de secretária.

— Sinto muito, mas atrasos não são toleráveis. Já se passou quase uma hora.

— Mas a senhora não entende, eu precisei subir as… Olha, eu preciso muito desse emprego, e…

— Mocinha, dê uma olhada no espelho! Parece que foi um caminhão de lixo que te trouxe. Com esse cabelo desgrenhado, rosto suado, a roupa toda remexida… Nem que eu te deixasse entrar, jamais te dariam essa vaga. Secretária executiva não anda assim.

A mulher voltou o olhar novamente para umas pastas em cima da mesa. Prestes a chorar, Elena percebeu que discutir seria em vão. Mais uma vaga que ia para o saco.

Respirou fundo, ajeitou o terninho, e quando preparava-se para descer todos os degraus novamente, ouviu um psiu. Era novamente o rapazinho.

— Ué, já está indo embora?

— Bom, eu acabei subindo de escada, aí cheguei atrasada. Deu no que deu. Nem quiseram me entrevistar. E você?

— Eu vim para a vaga de motorista.

— Conseguiu?

— Na verdade, eu acabei percebendo que a vaga não se encaixava muito no meu perfil, por isso estou indo embora.

— Que pena! Parece que não foi o nosso dia, não é mesmo? Sabe, eu preciso de ajuda. Essa história de ter medo do Mesmo está me causando muitos problemas.

— Ah, isso é verdade! Esse negócio de mania atrapalha a vida de muita gente. No seu lugar, eu estaria muito preocupado! Procure um psicólogo, não precisa ter vergonha.

— É, eu farei isso assim que puder. Agora preciso ir. Sabe como é, tenho um longo caminho pela frente.

— E eu fico por aqui. Tchau! – disse ele, apertando o botão para descer.

Ela acenou, e desapareceu pela porta de incêndio.

Enquanto aguardava, o celular dele tocou. Era a esposa.

— Alô?

— Oi amor, sou eu. E aí, como foi a entrevista?

— Ah, nem te conto. Senti um mau presságio logo que cheguei!

— Não me diga que é o problema com os números ímpares, novamente.

— Não é problema, Isabel. É sério! Você precisa acreditar. Tudo ia bem quando contei seis elevadores. Aí descobri que a entrevista seria no décimo terceiro, sala mil trezentos e sete. Salário de mil e um reais. Para trabalhar cinco dias por semana. Vai me dizer que estou ficando louco? Com certeza, isso foi um péssimo sinal. Saí de lá correndo.

— Alberto, você está ficando louco, e vai acabar envolvendo a família toda na sua loucura.

— Então é isso, você acha que sou louco.

— Acho. E estou pensando seriamente em me separar de você, antes que isso me contagie.

— É mesmo?

— Mesmo.

Aumentando um ponto

Voltei!

E feliz horário de verão para você, que detesta essa época tanto quanto eu!

Conforme os posts anteriores, continuo disponibilizando aqui alguns exercícios do curso de Criação Literária que estou fazendo.

Dessa vez, tínhamos que combinar, em uma única narrativa, 2 tipos de narradores diferentes (no caso, em primeira e terceira pessoa).

Se vc leu o post das Tendências Suicidas, sobre a nossa adorável caixa de supermercado (que agora tem nome!) que estava prestes a se jogar no “vão entre o trem e a plataforma”, fica aqui uma continuação. Aproveitei que estou curtindo fazer essa historinha, e aumentei mais um ponto.

Ficou um pouco longo. Leia com calma, a não ser que vc seja daquelas pessoas que leem rápido, ou não tenha nada para fazer.

Não posso garantir nada, já que ainda não acabei o “Fios de Trigo”, mas algo me diz que isso vai virar outro manuscrito (provavelmente em 2016).

Desfrute! (ou não!)

Letra cursiva

A cada gole de café, Carolina observava um detalhe do apartamento. Era mesmo um lugar pequeno, mas bastante organizado, pelo menos assim era a sala, com livros organizados por cores – ou por nomes, ou pelas duas coisas – e bibelôs brilhantes. As paredes da sala eram brancas, assim como o sofá no qual estava acomodada, e havia poucas fotos na estante, as quais não conseguia identificar à distância. Levantou-se, ainda com a xícara de coraçõezinhos na mão, e aproximou-se do móvel.

— Há quantos anos vocês são casados?

— Faz 7 anos. Quase 7. – gritou Daniel, do outro cômodo. – Estou quase encontrando… Já estou indo!

— Eu não estou com pressa. Fique à vontade.

Carolina passou o dedo na estante, e não havia qualquer sinal de poeira. Lembrou-se de como Cecília sempre foi bastante metódica, desde menina. Sempre foi a responsável pela limpeza da casa. Talvez não tivesse mudado nada, afinal. O primeiro retrato desmentiria aquela teoria. O cenário era uma praia qualquer, e havia um casal sentado em cadeiras de praia. Daniel segurava um coco com uma mão, um cigarro com a outra, e sorria para a foto; a moça era bastante magra, tão magra que era possível ver uns contornos nas laterais de seu rosto que mais pareciam vincos desenhados, e usava um biquíni azul-marinho tomara-que-caia, que até parecia folgado. Tinha o cabelo bem preto, curto, com uma franja displicente que cobria um dos olhos, e não usava brincos. Seu sorriso forçado dizia uma coisa, mas o olho descoberto dizia outra. Delicada contradição. Aqueles mesmos olhos azuis claros, que pareciam refletir a cor do mar. Olhos que sempre pareceram melancólicos demais para uma menina.

Era ela. Aqueles olhos eram a única coisa que sobraram de Cecília, o único traço que tornava possível sua identificação; o resto era incógnita.

— Aqui estão. Cecília as guardou em uma caixa lá no alto, mas consegui achar. Estão um pouco empoeiradas, você tem rinite?

Ela sorriu.

— Não, não tenho.

— Cecília tem. Por isso é que ela tem tanto medo de pó. Como é mesmo o seu nome?

— Carolina.

— Bom, então acredito que todas essas cartas estão endereçadas a você. Não se preocupe, eu nunca li nada. Ela nunca deixou.

— Há algo para Cristina?

— Cristina? Hum, deixe-me ver… – disse, enquanto separava os envelopes, colocando-os em seguida na mesa de canto. – Não, só para Carolina mesmo.

— Claro. Elas sempre se odiaram.

— Como?

— Não é nada. Se importa?

— Claro que não. Pode ler, Carol.

A pilha era enorme. Carolina não sabia por qual começar. Sentou-se, deixou a xícara próxima ao monte, e pegou o envelope que estava no topo.

—Posso te chamar de Carol?

Ela assentiu rapidamente. Viu que ele ainda estava de pé, ao lado da mesa de jantar.

— Você vai ficar aí parado, enquanto eu leio?

— Eu também quero saber!

— Eu não vou ler em voz alta, se é isso o que está esperando. – gritou, olhando fixamente para ele, deixando-o imediatamente desconcertado.

— Ah sim, eu… Bom, leia enquanto irei ao subsolo jogar o lixo. Já volto.

Ela abriu o envelope, e sorriu involuntariamente antes mesmo de analisar o conteúdo. A carta havia sido escrita em um de seus papéis de carta dos Ursinhos Carinhosos, com a letra cursiva perfeita. Cecília nunca precisou de aulas de caligrafia, conseguia escrever lindamente até em papel de pão; a falta de pauta na folha nunca foi um problema para se orientar. Iniciou a leitura.

“05 de julho

Oi Carol,

Como foi o dia na escola? Espero que tenha aprendido muito hoje!

Quero me desculpar, pois hoje não estarei em casa para ajudá-la nas tarefas, ou preparar o seu almoço. Amanhã também não estarei. Nem depois de amanhã. Mas não fique triste comigo, por favor.

Eu nunca quis fugir. E não fugi por sua causa. Aliás, a única coisa que quase me fez mudar de ideia foi justamente você. Quando te vi parada com aquele ursinho na mão, partiu meu coração saber que nunca mais cuidaria de você. Senti um vazio enorme, com medo do que aconteceria com você depois que eu partisse.

Quem penteará seu cabelo? Quem lhe dirá a hora de tomar banho, ou lhe ensinará a tabuada? Quem arrumará as roupinhas na sua gaveta, ou passará seu uniforme? Espero que alguém esteja zelando pela sua segurança. Você ainda é muito criança, mas quando estiver maiorzinha, vai entender meus motivos. Tenho certeza disso. Você é uma menina muito inteligente, Carol, dá para ver…”

Carolina suspirou. Quando foi que deixou de ser inteligente e se tornou tão incapaz?

“…nos seus olhos, uns olhinhos curiosos. Nós temos olhos bem parecidos, você já reparou? É que nós vemos o mundo da mesma forma. Os olhos de Cristina são diferentes. Ela vê as coisas pelos olhos de mamãe. E enquanto for assim, eu não poderei voltar para casa. Mamãe quer que eu veja tudo pelos olhos dela, e eu tenho 15 anos, não sou criança, já posso enxergar sozinha!

Carol, não deixe que mamãe controle os seus olhos. Não deixe que ela diga coisas que afetem você. Ela é muito boa nisso. Olha o que ela fez comigo e com Cristina. Nós andávamos de mãos dadas, e agora ela me odeia. Não a deixe alisar seu cabelo, ou pintá-lo com 10.1. Guarde este número. É a tinta preferida de mamãe.”

Daniel havia voltado, mas ela não notou. Ele sentou-se no braço do sofá, ao lado dela, mas ela não se moveu. Parecia totalmente imersa.

“Mamãe deve estar com muita raiva agora. Ela vai te ameaçar, te deixar sem comer ou até te bater. Ela acha que você sabe de algo, e nós duas sabemos que ela não toca em Cristina. Se isso acontecer, me perdoe por isso também. Mas eu não podia suportar mais. E seja forte. Com o tempo, você até se acostuma.

Estou num local seguro, com alguém que me conhece. Acho que aqui serei feliz. Talvez eu até arrume um trabalho, ou estude, não sei ainda. Eu ainda não posso falar onde é. Um dia, vamos nos encontrar e eu contarei tudo.

Antes de dormir, sempre penso em você, minha menina.

Se mamãe te disser coisas que te façam chorar, lembre-se disso: além de linda, você é inteligente, carinhosa, tem muito valor e é muito importante para mim, pelo simples fato de existir. Nunca se esqueça disso.

Eu te amo.

Cecília.”

Carolina soluçava, e quando a mão de Daniel pousou em seu ombro, ela tomou um susto.

— Eu não quis interromper.

— Já acabei.

— Quer uma água?

— Não… Olha, eu preciso ir agora. Posso levar as outras cartas?

— Mas o que diz aí? Eu preciso saber onde ela está! Eu nem sei de onde você surgiu, qual seu parentesco com ela, deixei você entrar na minha casa, e agora você simplesmente vai embora?

— Essas cartas são todas para mim, você mesmo viu.

— Eu preciso de respostas.

— Ela nunca disse que tinha irmãs, não é? Bom, eu também preciso de respostas. Mas as minhas são mais urgentes. É caso de vida ou morte.

Um a um, ela enfiou os envelopes de qualquer jeito na bolsa, e dirigiu-se à porta de entrada. Daniel a deteve, segurando-a pelo braço engessado. Carolina fez uma careta de dor.

— Como eu terei certeza de que você não vai sumir com a mesma rapidez que você apareceu?

— Quando eu terminar de ler… Quando eu tiver as minhas respostas, você terá as suas. Eu vou voltar, eu prometo. Sinto tanta falta dela quanto você, só não sei mais quem ela é. Agora solte o meu braço, ou terei que dar um murro na sua cara. Falo sério.

Ele a soltou. Sem olhar para trás, ela saiu, batendo forte a porta de madeira.

Daniel recolheu a xícara, levou-a até a pia e voltou para a sala, dirigindo-se à estante, onde tinha encontrado aquela jovem parada, compenetrada, como quem admira uma obra de arte, mas não consegue entender muito bem do que se trata.

Parado exatamente no mesmo lugar que ela, ficou observando a foto.

A visita de Carolina o tinha atordoado; também não sabia mais quem era Cecília, ou quem tinha sido antes de conhece-lo.

Pelas lágrimas e bochechas rosadas daquela jovem, sentiu que precisava saber. O quanto antes.

 

Herói

Mais um conto derivado de um exercício em sala.

Desta vez, a proposta era a seguinte:

“Escreva um conto em primeira pessoa, narrado por um personagem diferente de você. O narrador-protagonista está ocupado com um projeto pessoal de difícil realização dentro dos limites pessoais, sociais e históricos. Ele(a) se lançará a tão incerta aventura?”

Segue conto abaixo.

Apresento-lhes “Herói”:

Herói

— Seu bebê pode não sobreviver ao parto.

Aquele deveria ter sido um dia muito especial.

Desde o início, eu e Thomas queríamos ter filhos. E quando digo “desde o início”, me refiro ao namorico de colégio, quando ainda nem sabíamos o que íamos fazer da vida. Em nossas conversas bobinhas de casal, o assunto sempre vinha à tona.

— Vamos ter um menino e uma menina. Benjamin e Laura.

O tempo foi passando, veio a faculdade, o namoro teve suas dificuldades, depois ficou mais sério, e quando nos graduamos – ambos em Direito-, decidimos ficar noivos. Eu sempre fui muito ansiosa, por isso disse logo a Thomas que não podíamos demorar muito. Dali a dois anos, nos casamos, em uma cerimônia simples e cheia de amor. Éramos uma espécie de “casal modelo”, e mais do que isso, parceiros de negócios, já que abrimos juntos o escritório de advocacia.

Tudo corria bem, sem grandes problemas. Mas faltava, obviamente, o nosso sonho juvenil: as crianças.

Thomas era sempre muito paciente, dizia que cada coisa tem seu tempo, mas eu começava a ficar apreensiva. 32 anos. O tique-taque dos ponteirinhos do relógio biológico me tirava o sono, principalmente porque nossa saúde era perfeita. Qual era o problema? Tínhamos tudo para receber esse pequeno ser, bastava que chegasse logo de uma vez. Houve alguns alarmes falsos, e eles só me deixavam pior.

Faltando alguns dias para meu aniversário de 33 anos, um presente antecipado: enfim estávamos grávidos. Sentíamos uma alegria imensa, eu queria gritar para o mundo todo ouvir. Fosse Benjamin ou Laura, o nome pouco importava. Podiam ser dois, três, uma dúzia. Só queríamos que tivesse saúde.

Fizemos um almoço para contar a novidade. Sem pensar duas vezes, éramos o casal mais feliz do planeta. A cada novo ultrassom, uma nova emoção. Thomas gostava de ir mais longe, tinha uma imaginação muito fértil. Ele achava que nosso bebê seria alguém importante, que faria história, um herói, quem sabe? Não custava sonhar. Talvez fosse culpa da Ilíada, livro que ele lia naquela época.

Até aquele dia.

— Seu bebê pode não sobreviver ao parto.

Thomas tinha acabado de chegar ao consultório, esbaforido, com aqueles calhamaços de processos que já faziam parte do seu corpo, e assim que ele abriu a porta, eu já estava chorando. Por uma fração de segundo, Thomas deve ter achado que era emoção; naquele dia específico, tentaríamos descobrir o sexo do bebê. Correríamos para as lojas, encheríamos um monte de carrinhos com roupinhas coloridas, escolheríamos a tinta para pintar o quarto, enfim, todos os preparativos. Mas ele logo percebeu que a situação era bem mais séria.

— Que bom que você chegou, Thomas. Falava agora mesmo com a Renata sobre o bebê. Temos um problema, e precisamos discutir o que será feito. Por favor, sente-se. Quer uma água?

A doutora Abigail era uma médica competente, recomendada por todas as minhas amigas que já eram mães, mas tinha um tom duro na hora de falar. Médico tem essa coisa de falar tudo na lata, sem preparar ninguém. Se eu tivesse que dizer o que ela diria a seguir, demoraria uma eternidade. Ou talvez nem dissesse. Nomearia uma pessoa mais fria para a missão.

— Eu sei que isso será muito doloroso, mas preciso comunicar que detectamos anencefalia no bebê. Por esse motivo, ele pode não sobreviver ao parto, ou apenas algumas horas. Minha sugestão é que seja feita uma intervenção, mas vocês são os pais. A decisão precisa ser conjunta.

Intervenção. Do jeito que ela falava, parecia tão simples. Ela acabava de transformar nosso projeto de quase 20 anos em uma espécie de ação de pequenas causas, do tipo “vamos todos nos sentar e discutir, buscar a conciliação, e definir o valor proposto para indenização”, então o juiz bateria seu martelinho, e cada um iria para o seu canto; não, aquele era o nosso filho, era a vida dele que estava em jogo, nós é quem daríamos a sentença.

Thomas agora estava sentado ao meu lado, mão em cima da minha, e apesar de demonstrar tristeza, parecia mais racional. Ninguém queria passar por aquilo, mas se era o melhor a ser feito, então não havia o que decidir. Ele e a médica começavam a falar sobre os procedimentos a serem realizados, e enquanto um filme passava na minha cabeça, olhava para cada um deles, tentando achar outra solução, e parecia não haver nenhuma.

Mas eu era advogada, e busquei um recurso. Ajeitei-me na maca, e proferi meu discurso:

— Eu seguirei com a gravidez. Não importa por quanto tempo meu filho vá viver, desde que ele viva. Que seja um segundo, aqui em meus braços, que ele dê apenas um suspiro, não faz diferença. Terá valido a pena. Agora, por favor, se possível, gostaria de saber o sexo do meu bebê. Não foi para isso que viemos aqui?

Aquilo foi um rebuliço. Thomas achou que eu fosse louca. Discuti com ele, com a médica, com pais, sogros, amigos e quem mais aparecesse. A contragosto, Thomas cedeu aos meus supostos caprichos, e realizamos todo o nosso ritual de compras, preparações, mas não havia mais aquele brilho no olho de ninguém, só aquele clima de velório, de desânimo, como se nada daquilo adiantasse.

— Ele não vai ser herói, Renata. Vai ser só um menino que sequer vai conhecer o mundo.

— Que besteira, Thomas. Ele será o nosso menino, nosso Benjamin, e vai viver o quanto for destinado a ele. Nós vamos amá-lo enquanto ele existir. – eu disse, enquanto mergulhava meus dedos em seus cabelos.

Marcamos a cesariana para o dia 29 de março, mesmo dia que meu avô, um homem pioneiro, cheio de ideias, um revolucionário, que sempre dizia que nada na vida acontece por acaso.

Não posso afirmar que meu avô estava olhando por nós, mas curiosamente, naquele mesmo dia, uma menina de 5 anos chamada Valentina havia dado entrada no mesmo hospital. A menina sofria dos rins desde que nasceu, e aguardava ansiosamente por um transplante.

Benjamin nasceu vivo, e era lindo, com os olhinhos iguais aos de Thomas, e para minha surpresa, toda a nossa família estava lá. Aquilo significou muito, só me deu uma certeza maior de que aquilo pelo qual passamos só iria nos fortalecer ainda mais.

Eu o amamentei, o ninei em meu colo, Thomas o segurou, tanto ele quanto o bebê choravam muito, e com muito orgulho, meu marido o exibiu para os parentes no vidro. Era um grande privilégio tê-lo conosco.

Um dos médicos, provavelmente tão maluco quanto eu, investigava novas técnicas de transplante, e após detectar que havia alguém compatível, conversou conosco. Era arriscado e incerto, mas permitimos que fosse feito. Era a primeira vez que um procedimento como esse era realizado em nosso país.

Tudo correu bem. Valentina tinha um novo rim, e Benjamin havia cumprido sua missão.

Eu e Thomas nos sentíamos gratos pela chance de ao menos conhece-lo. Em nossos corações, um misto de emoções, tristeza por vê-lo partir e alegria por aquela doce menininha.

Benjamin era, enfim, o bebê mais famoso da maternidade. Há quem lute por 15 minutos de fama, e ele foi além. Foram 6 horas inesquecíveis.

Ao nos despedirmos dele, nos abraçamos, e Thomas cochichou em meu ouvido.

— Nosso Benjamin foi um herói. O mais importante de todos.

Um novo amor chamado Rubem Fonseca (ou “Caminhada Noturna”)

Hoje já é quinta, dia 08 de outubro, o mundo não acabou ontem – e isso quer dizer que o Natal e o Ano Novo estão bem próximos (só queria que todo mundo sentisse a mesma agonia que estou sentindo agora), mas…

Como prometido, mais um texto “fruto” de exercícios em sala de aula.

Desta vez, tivemos como base o conto “Passeio Noturno” (link AQUI, RECOMENDADÍSSIMO ABRIR/LER ANTES DE LER O MEU TEXTO), e precisávamos continuá-lo (uma espécie de Parte 2).

Este é um conto de um autor chamado Rubem Fonseca, o qual eu só conhecia de nome, mas por quem me apaixonei repentinamente. Enumero as razões:

1-Um autor que tem um conto censurado pela Ditadura tem tudo para ser ótimo;

2-Esse texto me fez sair das “vibes góticas” para as “vibes psicopáticas/críticas à sociedade” e isso é maravilhoso;

3-Fez com que eu fosse atrás de um autor nacional.

Já leu o texto no link acima?

Ótimo.

Se não leu, OK. Dá pra entender do mesmo jeito.

Sem mais enrolação, segue a minha continuação. Discorram:

Caminhada noturna

Acordei. Seis horas e quinze minutos cravados.

Eu já sabia que seria mais um daqueles dias sem o menor rastro de vida, mais uma odisseia automatizada, uma continuação da minha existência em tons de cinza.

Com uma diferença: desta vez minha mulher estava ao pé da cama, uísque na mão (para variar). Ela nunca se levantava antes do meio-dia, e enquanto coçava os olhos, tateando o criado-mudo em busca de meus óculos, notei que havia uma coisa nova em seu olhar: emoção.

E não era das melhores. Não, o quarto estava cheirando a desespero.

— Precisamos conversar. Agora mesmo.

Sentei-me. O que poderia ser? Divórcio é que não seria. Na casa dos cinquenta, ela dificilmente acharia outra alma generosa para bancar seus luxos. Ninguém mais compra carro seminovo, não compensa a manutenção.

— Pode falar. O que foi? – perguntei.

Ela começou a apertar umas chaves na mão, e pelo chaveiro, notei que eram as do meu carro.

— Está no jornal. Ninguém fala de outra coisa. Você precisa dar um jeito nisso.

Senti uma espécie de ânsia. O passeio. A batida. A mulher. Permaneci calado. Não é isso o que pedem na delegacia?

— Com que cara eu vou olhar para os vizinhos? Vamos, levante-se, resolva isso!

— O que você quer que eu faça, mulher?

— Se vira. Isso não é problema meu. – levantou-se, ajeitou o robe e deu um último gole no scotch, desaparecendo no corredor.

Fui atrás dela.

— Talvez eu deva ligar para o advogado.

— Você é quem sabe. Vou tomar banho. Seu filho está te esperando.

O que deu em todo mundo hoje? Sou o único que acorda cedo nesse ambiente, afinal, sou o provedor.

Desci as escadas, e lá estava a minha filha, com a cara metida no celular, ainda de pijama.

— Bom dia.

Não respondeu.

— Você não ouviu que eu te dei bom dia?

— Você não viu que estou no celular? – e me encarou com aquelas olheiras enormes de quem passou a noite fora. Não sei por que insisto.

— Cadê o seu irmão?

— Olha, mamãe vai para Paris no feriado. Eu é que não vou ficar aqui. O pessoal da faculdade vai para Angra. Vou precisar do cartão. Tem limite?

E antes que retornasse ao mundo virtual, soltou mais uma:

— Ah, mamãe te falou sobre o Ricardinho? Você tem que ir na delegacia. Não sei direito o que é, mas ele foi preso… Mamãe quer ele solto antes da viagem.

Fiquei parado ali, por um momento, na mesma posição. Aquilo não era sobre o carro. Que ingênuo que eu sou. Mas é claro, eu devia ter pensado que aquilo nunca foi sobre mim. Afinal, sou um mestre na minha arte.

Me senti orgulhoso. Parece que Ricardinho servia para alguma coisa, enfim. No entanto, ainda precisava comer muito arroz e feijão. Ser pego, assim, logo de primeira?

Cheguei à delegacia, junto com nosso advogado.

Minha mulher não me acompanhou. Minha filha tinha academia.

Olhei pelo vidro. Ricardinho não parecia preocupado. Estava mais com cara de “pensionista do INSS” do que “criminoso da Lapa”.

Ao me ver, sorriu. Eu fiz sinal que ia fumar lá fora.

E fiquei por ali, aguardando o advogado.

A situação era séria.

Ricardinho tomou umas cervejas na Lapa. Quando decidiu voltar para casa, descobriu que seu carro tinha sido roubado (é claro, mais um problema para mim). Caminhava sem destino, transtornado. Avistou uma mulher, chamou-a, mexeu com ela, mas esta não lhe deu bola. Ele decidiu ir atrás dela. Ela lhe xingou. Começou a correr. Ele correu atrás dela.

— E o que isso tem demais? – perguntei.

— Depois de cansar da correria toda, parece que seu filho atirou várias vezes pelas costas da moça, e depois de morta, ele ainda ficou dando uns chutes no corpo. Um mendigo viu.

— Já identificaram?

— Já.

— Quem é?

— Suburbana, senhor. Nada demais. Acho que era diarista.

— Dá para tirar ele daí?

— Ele se apresentou. Não tem passagem. Réu primário. Relaxa, senhor, ele vai responder em liberdade. Mas Paris já era. Você entendeu, rapaz?

— Eu nem queria ir. – e deu de ombros.

Horas perdidas naquele lugar, e Ricardinho liberado. Que dor de cabeça. Assim que entramos no carro, chegou mensagem da minha mulher. Ela perguntou se “resolveu” e eu respondi que resolvi.

— O que foi aquilo, Ricardinho?

— Desculpa aí, pai. Se não fosse o mendigo, ninguém ia saber.

— E aquele revólver?

— Comprei de um amigo. É que eu fiquei nervoso! Levaram o meu carro!

— Eu sei, filho. O Rio violento mesmo. Depois compramos outro. Olha bem para mim, à noite teremos uma conversa. Preciso te ensinar uma lição.

Chegamos em casa. Disse a Ricardinho “comporte-se” e ele não respondeu. Minha filha já tinha ido para Angra. Minha mulher me esperava na sala, malas ao seu redor. A empregada descia as escadas, trazendo mais algumas.

Depois de deixa-la no aeroporto, voltei para casa.

Estava agitado como nunca, não consegui trabalhar uma hora sequer. Tinha sérias preocupações quanto ao meu amanhã.

Jantei sozinho.

Bati na porta do quarto dele.

— Vamos. Preciso te ensinar uma lição. Vai te servir para a vida.

— É sério, pai? Não dá para esperar o jogo acabar?

— Não, não dá.

Dessa vez, não tinha carro algum na garagem, além do meu. Bem mais fácil. Como de costume, comecei a rodar pela cidade. Ricardinho estava mudo. Parecia que estava sozinho. Nada de anormal.

— Filho, onde foi que aquela moça morreu? Lembra onde é?

— Claro.

— O mendigo fica por ali?

— Acho que fica.

Senti a adrenalina.

— Como ele é?

— Sei lá, pai. Pretinho, magrinho, parece uma criança.

— Tem iluminação lá?

— Quase nada.

Já estávamos quase chegando no local. Ricardinho apontou para o homem, cambaleando com uma coberta na mão.

— É ele, pai! Olha ele ali!

Não pensei duas vezes. Bati nele com o carro e passei por cima. Sentimos um pequeno solavanco. Parecia uma lombada malfeita. Devia ser bem franzino mesmo.

Olhei pelo retrovisor. Sem movimentos. Ninguém nas proximidades.

Arranquei sem dificuldade. Ricardinho não exprimia qualquer emoção, o que era bom. Estava aprendendo.

Estacionei na garagem, dei uma olhada geral no carro. Tudo intacto. Meu filho desceu do carro e entrou em casa.

Fui até a cozinha, bebi um copo d’água, e antes que fosse dormir, passei novamente no quarto dele.

— Aprendeu?

— Sim, pai.

— É assim que se faz. Já vai pensando no modelo que vamos comprar para ti. E o Flamengo?

— Não jogou nada. Perdeu de 3. Acabei de ver.

— Típico. – sacudi a cabeça, em reprovação. – Vou dormir. Boa noite, meu filho.

— Boa noite, pai.

— Vê se toma cuidado da próxima vez, Ricardinho. Tem muita gente perigosa por aí.

Primeiro de outubro

Everyday-Self-Love-Image

Primeiro de outubro

Isso não é um diário.

Eu não escrevo diários.

Você sabe.

Estou à mesa de um boteco qualquer, daqueles bem largados – onde você jamais pisaria. Ou até pisaria, mas não se arriscaria a comer sequer um inocente croquete (adoro o som dessa palavra). Hoje faz muito calor.

Aqui estou, eu e meus companheiros: à esquerda, uma dose de cachaça; à direita, um maço de cigarros. E tal como qualquer amigo, desconheço a procedência deles, mas já os amo muito.

É, eu continuo bebendo e fumando na mesma intensidade, como sempre. Mas agora, tenho outra motivação. Antes, meus tragos e goles eram em sua homenagem. Hoje, dedico-os à vida maravilhosa que tenho.

Sim, eu brindo ao hoje, às cabeçadas do passado que deram luz às escolhas do presente. Sem empecilhos, sem julgamentos, eu erro, acerto, tropeço, levanto, e não me importo com nada, com o que acham, ou com o que você acha.

O mais engraçado é que não faço a menor ideia de onde você esteja (longe ou perto?) e isso me traz uma paz enorme. É sério.

O que importa, nesse momento, é que hoje é dia primeiro de outubro, amanhã é dia dois (por que ninguém fala “segundo”?), e a vida segue.

Primeiro de outubro: mais um dia que vivi para mim. O dia-do-amor-próprio (deveria existir um dia só para isso).

O amor-próprio é tipo aquela primeira tatuagem. Antes do fato consumado, dá um frio na barriga! No começo, pode até doer um pouco, mas depois a gente se acostuma, e até acha bom. Dali a um mês, já quer repetir a dose. E tal qual tatuagem, uma vez fixada na pele, é para sempre.

Mas o amor-próprio não é qualquer tatuagem, não mesmo. É daquelas bem feitas, trabalho de mestre, arte mesmo. Daquelas que a gente tem orgulho de mostrar, porque sobreviveu ao medo, à dor e não sobrou nenhum arrependimento.

Hoje é dia primeiro de outubro, e é só mais um dia normal.

Costumeiro.

Um gole, uma mordida.

Simples.

Singular.

Uma baforada.

Nunca mais haverá outro dia como esse.

Um dia normal, plenamente vivido, com a felicidade escrita na testa.

Existe coisa mais linda?

Tendências suicidas – “Amor tem nome”

Como prometido, segue mais um texto “gothic vibes”.

Desta vez, não foi proposital, foi quase obrigatório: a ideia proposta era pegar um texto de um colega de sala em terceira pessoa, e transformá-lo em primeira pessoa.

Para mim, ficou a história relatada por um médico, sobre uma jovem que faleceu no hospital por overdose de Rivotril. Aparentemente, o episódio ocorreu em seguida a uma discussão de casal.

Eu até achei bem irônico/engraçado.

Amigos do clonazepam (google it) e dependentes amorosos, essa é pra vocês!

Amor tem nome

Tá, eu vou admitir, bem no estilo AA. Me chamo Daniela, tenho 15 anos, e sou carente. Muito carente. Desde… desde sempre. Não, não tenho vergonha de admitir.
Minha família já largou de mão. Minha mãe, então, só grita comigo. Todos me acham irritante, bobona…
Pelo menos, eu tenho namorado. 
Meu porto seguro tem nome: André. Grosso? Sim. Casado? Sim. Mas é o que tem para o momento.
Ou tinha.
— Princesa, vamos acabar por aqui? Você é muito novinha, minha esposa tá quase descobrindo… Já deu, né?
Se já dei? Claro que já. Muitas vezes, aliás.
Nem respondi. Com raiva, desliguei o celular na cara dele, joguei-o na cama, e rapidamente corri para o banheiro. Fui buscar outro amor. 
Nome? Rivotril.
Um amor daqueles abundantes, intensos, vertiginosos. Dizem que pode ser mortal. Tem gente que chama de hipocondria. Vai saber…
Quase que de repente, caio no chão do banheiro. Vejo tudo rodar, as pernas fracas, será meu fim? Espero que sim.
Sinto que vou perder a consciência. Será que já tive alguma?
Antes de apagar de vez, chega o abraço desesperado da minha mãe.
Ela mesma, a histérica.
— Filha, por favor, não desmaia! Não me deixe!
Naquele momento, finalmente descubro o significado do verdadeiro amor: aquele que vem do ventre.
Um amor que não precisa de muito para existir, e mesmo assim dura para sempre.
Ao cerrar meus olhos, um pensamento: Pena que é tarde.

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